
Christiane Bôa Viagem, jornalista
Aos 9 anos, a nadadora pernambucana Joana Maranhão – que deu nome à lei no. 12.650/2012 – foi abusada sexualmente pelo seu então treinador. Ele passou a mão em seu corpo por dentro do maiô, situação que causou grande trauma na nadadora que só conseguiu entender e falar sobre o caso quando adulta.
A história de Joana não é isolada e se repete a cada dia. Pelo levantamento do Ministério da Saúde, os registros levam a um número de 80 casos por dia.
São mais de 202,9 mil casos de violência e abuso sexual contra crianças e adolescentes registrados no país entre 2015 e 2021. Pesquisadores afirmam que há uma subnotificação de casos, estimando que apenas 10% desses crimes sejam denunciados. Consideram algumas razões pelo baixo número de denúncias, como medo do agressor, culpa da ocorrência do ato, vulnerabilidade econômica e social etc.
O registro de casos contra crianças entre 0 e 9 anos equivale a 41,2% do total. Contra adolescentes entre 10 e 19 anos, os casos são referentes a 58,8%. Ainda há os casos envolvendo bebês de até um ano, equivalente a mais de um caso por dia. O ano de 2021 foi o que teve um maior número de registros, foram 35.196. Esses registros mostram que a maioria das vítimas são do sexo feminino e majoritariamente os agressores são do sexo masculino. No caso das crianças de até 9 anos, na maioria dos casos, o agressor é um familiar, seguidos de amigo ou conhecido. Os registros trazem também que o maior número de abusos acontecem dentro de casa, seguido pela escola. O cenário é o mesmo para as adolescentes de 10 a 14 anos: os agressores são homens, familiares e conhecidos e o local de ocorrência mais comum também é a residência. Observa-se, com isso, uma recorrência de abuso sexual infantil intrafamiliar, tendo os agressores as próprias pessoas que a criança conhece, confia e ama: pais, avós, tios, padrastos, irmãos. A ocorrência gera para a vítima e toda a família um cenário de tensão e conflitos internos, causando sofrimento psíquico e até desenvolvendo psicopatologias.
A criança abusada sexualmente, particularmente dentro da família, sofre significativos prejuízos à sua saúde mental, vivenciando uma situação de trauma psíquico, sentindo-se ameaçada e desamparada, experimentando angústia de morte. O abuso sexual infantil intrafamiliar prejudica o desenvolvimento saudável da criança, repercutindo com danos que perduram até a vida adulta, pois a vítima não possui um sistema cognitivo desenvolvido para lidar com o episódio. [1] O adolescente, por exemplo, manifesta sintomas e sofrimentos mentais, alterações comportamentais e psicológicas que ele mesmo não entende. Pode apresentar transtorno pós-traumático, depressão, ansiedade, pensamento suicida, baixa autoestima, dificuldade de relacionamento, sentimentos de culpa e desamparo.
Essa relação sexual entre crianças e adolescentes e seus familiares é considerada incestuosa, uma transgressão realizada no corpo de uma pessoa com relação de consanguinidade de primeiro grau ou vínculo simbólico similar. Vai na contramão da cultura, dos costumes e da moral. Para Freud, a proibição do incesto é uma estrutura fundamental para construção da estrutura mental da pessoa.
O que é considerado abuso sexual infantil?
O abuso sexual infantil é uma violência em que a criança se encontra submetida à dominação, exploração e opressão de um adulto que é hierarquicamente superior a ela. Há uma intenção clara de prazer sexual do adulto, além de querer estimular e controlar a sexualidade da criança. Ultrapassa os limites físicos (sexo oral, carícias, toques genitais) e psicológicos dela (assédio sexual, abuso sexual verbal, reprodução e exposição de pornografia), tratando-a como uma coisa, um objeto. No abuso, a criança não tem condições de decidir ou compreender a natureza do ato, que pode acontecer com ou sem violência sexual e vai desde carícias até o ato sexual em si. O abuso envolve um olhar invasivo que observa o corpo nu ou seminu da criança, exibições eróticas do corpo do adulto para chocar ou despertar sexualidade da criança, atos de masturbação forçada, palavras obscenas ditas pelo adulto, entre outros. [2] Entender os sinais os quais a criança apresenta é fundamental para identificar se está acontecendo algum abuso. Ao observá-los, recomenda-se buscar orientação especializada de um profissional, como um psicólogo, que é capaz de investigar se são indicativos de vulnerabilidade ou parte do próprio desenvolvimento daquela criança ou adolescente.
Quais são os sinais de possível abuso sexual infantil? [3]
- Surgimento de medos e rejeições, principalmente o de ficar sozinha com um adulto específico;
- Comportamentos regressivos, como querer voltar a dormir na cama com os pais, fazer xixi na cama, chupar dedos, usar chupeta e/ou mamadeira etc.;
- Comportamentos agressivos, como machucar animais;
- Comportamentos hipersexualizados ou inapropriados para a idade, como brincadeira sexualizada com amigos, bonecas e animais;
- Evasão escolar e/ou queda súbita de rendimento ou frequência escolar;
- Sinais físicos, como lesões e outros hematomas sem uma explicação clara para terem ocorrido; coceira ou vermelhidão nos órgãos genitais, além de sangramento ou corrimento;
- Gravidez precoce;
- Infecções sexualmente transmissíveis.
Nessa situação, é fundamental acolher a criança, sem questionar seu relato ou desconsiderar seus sentimentos, não criticá-la ou julgá-la, mas buscar uma relação de confiança com ela. Deixar claro que a culpa do abuso não é dela, é do abusador.

Como a lei trata o autor de abuso sexual infantil?
Maria Angélica, advogada
A legislação brasileira prevê punições para situações de abuso, classificando crianças e adolescentes como pessoas vulneráveis. O Código Penal tipifica no artigo 217-A, o crime de estupro de vulnerável. A lei apresenta a seguinte redação: “ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (quatorze) anos”, com a modificação trazida pela lei 12.015/2009 com objetivo de tornar clara a vulnerabilidade absoluta do menor de 14 anos. O critério etário foi o adotado pelo legislador, passando a existir o conceito de vulnerabilidade.
A Súmula 593 do STJ já deixava clara a concepção objetiva da vulnerabilidade, ao estabelecer que “o crime de estupro de vulnerável se configura com a conjunção carnal ou prática de ato libidinoso com menor de 14 (quatorze) anos, sendo irrelevante o eventual consentimento da vítima para a prática do ato, experiência sexual anterior ou existência de relacionamento amoroso com o agente.”. Outro ponto importante é que a conduta tipificada como estupro de vulnerável diferentemente do crime de estupro elencado no art. 213 do Código Penal, não necessita de violência ou grave ameaça para que o crime seja consumado, basta que pratique atos sexuais contra pessoas vulneráveis.
Conforme o exposto, há de se concluir que qualquer pessoa com menos de 14 anos, podendo consentir ou não, de modo válido, mesmo compreendendo o significado e os efeitos de uma relação sexual, está proibida por lei, de se relacionar sexualmente. Descumprindo o tipo penal apresentado, a pessoa com quem o menor de 14 anos se relacionar será punida, caso maior de 18 anos, pela conduta de estupro de vulnerável e se menor de 18 anos, por ato infracional.
Outra lei voltada a autores de abuso sexual infantil é a de no. 12.650/2012 que mudou o prazo de prescrição do crime que passou a contar a partir da idade de 18 anos da vítima. A lei ficou conhecida com o nome de Joana Maranhão, que teve seu caso considerado prescrito, porque a denúncia só ocorreu 12 anos após o acontecido, quando ela já tinha 21 anos.
Enfim, o abuso sexual infantil intrafamiliar é um tema presente que não recebe atenção necessária, sendo considerado um problema social e de saúde pública. A casa é o lugar onde a criança deveria se sentir acolhida, segura, amparada, protegida, livre, mas, para algumas crianças, é um local de ameaça e risco. O que nos cabe é ficarmos atentos e proteger a criança em todos os lugares em que ela se encontra. A prevenção é a melhor solução.
Fontes:
[1] Silva, F.S.R.; Paiva, G.C.T. A violência sexual infantil intrafamiliar: um estudo das possíveis consequências psicológicas. Disponível em: https://www.psicologia.pt/artigos/textos/A1257.pdf.
[2] Martins, J. M. O abuso sexual infantil intrafamiliar: do segredo à elaboração. Disponível em: https://tede2.unicap.br:8080/browse?type=author&value=Martins%2C+Janaina+da+Mota
[3] Disponível em: https://dossies.agenciapatriciagalvao.org.br/violencia-sexual/tipos-de-violencia/abuso-sexual-infantil/.