
Aline D’Avila, psicóloga
Em virtude das altas taxas de violência contra a mulher, medidas de enfrentamento figuram entre as prioridades pelo Poder Judiciário há sete anos consecutivos (CNJ, 2022). Nesse sentido, e para além da conceituação acima, a violência contra a mulher é um fenômeno bastante complexo e composto por diversos fatores, tais como sociais, culturais, psicológicos, ideológicos e econômicos (COSTA, 2003). Sendo assim, torna-se imperioso compreender a complexidade desses fatores a fim de que se possa pensar em alternativas de identificação, prevenção e intervenção aos agressores (STENZEL, 2014).
Diante deste panorama, os profissionais forenses (assistentes sociais e psicólogos) são constantemente solicitados a auxiliar os magistrados em sua tomada de decisão. Especificamente, os psicólogos são convocados a: (1) descrever a natureza, frequência, gravidade e consequências da violência prévia; (2) fazer predições sobre a probabilidade e gravidade de violência futura; (3) fazer recomendações de intervenções em relação ao agressor e também à vítima e (4) fazer predições sobre os resultados prováveis dessas intervenções (HUSS, 2011 p. 247). Essas avaliações psicológicas, nomeadas como avaliação de risco de violência doméstica, permitem a identificação de diversos fatores de risco e de proteção e fornece informações sobre os precipitantes dos atos violentos, as possíveis áreas de intervenções que contribuem para a cessação da violência e para o estabelecimento de medidas mais adequadas a cada agressor (GONÇALVES, 2004). Uma avaliação de risco mais efetiva é fundamental para o desenvolvimento de estratégias mais eficazes de intervenção (TAVARES e MEDEIROS citado em HUTZ et. al, 2020) e, quando realizadas em um contexto forense, auxiliam o juiz a chegar a uma sentença criminal ou a um programa de reeducação do agressor por meio de um tratamento adequado (HUSS, 2011). Sendo assim, essas avaliações são suscetíveis ao contexto e a finalidade para que são solicitadas, por exemplo: durante a investigação policial; antes do julgamento ou antes da promulgação sentença; no contexto prisional para auxílio no estabelecimento das diretrizes do Programa Individual de Ressocialização (PIR), para progressão de regime de pena privativa de liberdade ou para libertação do agressor; sempre que surgem novos acontecimentos ou quando os contextos do agressor se modificam (COMUNIDADE INTERNACIONAL DO MÉDIO TEJO, 2020).
Na avaliação de risco de violência doméstica, muitos aspectos são peculiares, como por exemplo, se a vítima está constantemente disponível para o agressor, pois caso afirmativo, aumenta-se as oportunidades de vitimização/agressão/violência (HUSS, 2011). Outros aspectos também devem ser considerados, como: a (1) dinamicidade dos fatores de risco, vez que podem sofrer alterações no tempo e são influenciados pelos contextos em que ocorrem e pelas percepções da própria vítima (HUSS, 2011; COMUNIDADE INTERNACIONAL DO MÉDIO TEJO, 2020); o (2) início da ocorrência da violência doméstica; o (3) tipo de violência perpetrada (psicológica, física, sexual, moral ou patrimonial); os (4) fatores demográficos e históricos do agressor como idade, status socioeconômico, etnia e exposição na infância à violência doméstica, dentre outros (FELDBAU- KOHN, SCHUMACHER, O’LEARY, 2000; HOLTZWORTH-MUNROE, SMUTZLER BATES, 1997b). Por ser um processo dinâmico e continuado é importante avaliar, monitorar e reavaliar o caso a cada nova entrevista ou atendimento e sempre que existirem novas informações. Ainda, a avaliação de risco deve ser devidamente fundamentada, documentada e baseada em uma abordagem compreensiva e abrangente, contemplando diversas fontes de informação, incluindo os intervenientes, dados processuais, dados colaterais, testemunhas, entre outros que se demonstrem importantes (COMUNIDADE INTERNACIONAL DO MÉDIO TEJO, 2020).
Existem muitas características psicológicas nos agressores conjugais que demonstram alguma associação com a perpetração de violência doméstica. Em estudos realizados com agressores conjugais em situação de privação de liberdade, verificaram presença de transtornos de personalidade, como personalidade antissocial, borderline e narcísica (HUSS, LANGHINRICHSEN-ROHLING, 2000; FERNÁNDEZ-MONTALVO, ECHEBURÚA, 2008), além de maiores índices de hostilidade e raiva (apud CALDEIRA, 2012; apud HUSS, 2011). Outros estudos, por sua vez, demonstram que esses indivíduos apresentam problemas psicopatológicos (KESSLER, MOLNAR, FEUER, APPELBAUN, 2001 ), déficits no controle dos impulsos (STENZEL, 2019), na capacidade de empatia e na expressão das emoções (ANDRÉS, 2004), presença frequente de distorções cognitivas, déficits em habilidades sociais e de comunicação (NORLANDER, ECKHARDT, 2005), baixa autoestima (ECHEBURÚA, AMOR, CORRAL, 2009), ciúme elevado, necessidade de poder e controle (SAFFIOTTI, ALMEIDA, 1995) e assertividade reduzida (HUSS, 2011). Ainda, fatores como dependência ao álcool e drogas parecem ter uma relação muito próxima com a perpetração de comportamentos violentos (apud CALDEIRA, 2012; apud HUSS, 2011).
A partir disso, no processo de avaliação de risco de violência doméstica, usualmente o profissional psicólogo deve recorrer a várias fontes de informações, como consulta aos registros criminais, médicos ou judiciários e a outros informantes, somado a entrevistas semiestruturadas, checklists (com pontos de corte de referência), questionários, inventários e escalas de autorrelato, além de testes psicológicos reconhecidos e validados pelo Conselho Federal de Psicologia (Resolução CFP nº 009/2018). O uso de instrumentos e procedimentos de avaliação de risco de maneira estruturada apresenta mais consistência e fidedignidade do que as abordagens não estruturadas e, consequentemente, produz mais impacto e resolutividade para prever a probabilidade de reincidência de violência (MEDEIROS, 2015).
Texto produzido por @psi_alinedavila
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