
Christiane Bôa Viagem, jornalista
Ser observado e seguido enquanto faz compras em uma loja ou ser parado pela polícia na volta do trabalho são práticas sociais racistas que constrangem a população preta, um reflexo de 300 anos de escravidão no país. A primeira vez que o Estado “admitiu” ser um país racista foi apenas em 1951, quando promulgada a primeira norma destinada a inibir e punir atos racistas, a conhecida Lei Afonso Arinos (Lei no. 1390/1951). Apesar de ser uma lei que não trata o racismo como crime, mas como contravenção penal, foi um marco histórico para a sociedade.
No âmbito da saúde, em busca de atender à reivindicação de movimentos sociais de políticas públicas inclusivas, em 2009, o Ministério da Saúde insere na dinâmica do SUS a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra. É um reconhecimento pelo Estado da existência do racismo e das desigualdades étnico-raciais em sua estrutura. [1]
Permeando todas as classe e instâncias sociais, o racismo é uma manifestação da nossa cultura que passa de uma geração a outra, determinando o que é desejável ou indesejável. Para o psicanalista Franklin Lino, “a subjetividade de um ser humano é formada a partir dos costumes. E este sujeito tem o anseio básico de ser desejado, reconhecido e amado. O racismo nega este anseio humano e é uma fonte a mais de sofrimento”. [2]
Esse sofrimento gerado pelo racismo é reiterado quando essa população (56% dos brasileiros se consideram preto ou pardo) continua sendo relegada a classes sociais com menos recursos financeiros, baixas condições de vida, dificuldades no mercado de trabalho, baixa remuneração etc. Estabelece-se, assim, uma estrutura racista.
As expressões culturais como “homem forte” e “mulher guerreira” podem até parecer elogios, no entanto, carregam forte pressão social, de que são pessoas que aguentam tudo. Isso pode contribuir com depressão, transtornos, estresse, medo, dependência química etc., além de doenças psicossomáticas, desencadeando problemas cardíacos, câncer e outras patologias. [3]
Segundo dados do Ministério da Saúde, o índice de suicídio entre jovens pretos, de 10 a 29 anos, é 45% maior do que entre os brancos da mesma faixa etária. Os jovens do sexo masculino têm 50% maior de chance de tirar a própria vida do que entre os brancos do mesmo sexo e idade. Entre 50% e 70% das pessoas que comentem suicídio não procuraram ajuda profissional como psicólogos e psiquiatras. Muitas por falta de recursos financeiros. [4]
Além do pouco dinheiro, há um outro aspecto cultural que pode influenciar na saúde mental, é o da religião. Muitos acreditam que todo problema tem causas espirituais. Então, tentam resolver com rituais e acabam não buscando ajuda profissional.
As relações afetivas também podem ser prejudiciais, pois as pessoas pretas costumam ser opções secundárias, por exemplo, como a mulher negra que não é a preferida, além dos homossexuais negros. Identifica-se uma ausência de espelhos, de representatividade, e os vários problemas estruturais de diferentes ordens. Assim, é necessário políticas públicas que possam intervir nas vulnerabilidades desses recortes sociais.
História
A saúde mental da população negra é discutida há muito tempo. No final do século XIX, os psiquiatras vinculavam doença mental com as “raças”, sendo algumas atribuídas como típicas de determinadas etnias e raças. O estudo de Damasceno e Zanello, de 2018, conta que prevalecia a ideia de que negros e mestiços estavam destinados à loucura, pois eram povos degenerados por definição. [5]
O primeiro psiquiatra e psicólogo negro do Brasil, Juliano Moreira, era um questionador dessas conclusões. Perguntava: onde começa uma raça e termina a outra? Foi um grande estudioso da área no final do século XIX, fundou a disciplina psiquiátrica no Brasil. [6] Ele rebateu as teses que doenças mentais eram causadas pela mestiçagem e que existissem doenças mentais próprias de climas tropicais. Moreira defendia que as doenças mentais estão mais ligadas ao alcoolismo, a sífilis, as verminoses, as condições sanitárias e educacionais adversas. Essas e outras ideias ligadas a saúde mental de negros e indígenas prevaleceram no Brasil até o início do século XX, quando deixaram, felizmente, de ser hegemônicas.
Fontes:
[1] Damasceno, M.G.; Zanello, V.M.L. Psicologia: Ciência e Profissão. 38 (3), Jul-Sep 2018. Disponível em: https://doi.org/10.1590/1982-37030003262017.
[2] e [3] Maciel, Cláudia. Brasil de Fato DF. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2022/07/05/saude-mental-da-populacao-negra-profissionais-de-psicologia-explicam-efeitos-do-racismo
[4] Amaral, Talita. CNN. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/saude/como-o-preconceito-racial-afeta-a-saude-mental-da-populacao-negra/
[5] Damasceno, M.G.; Zanello, V.M.L. Psicologia: Ciência e Profissão. 38 (3), Jul-Sep 2018. Disponível em: https://doi.org/10.1590/1982-37030003262017.
[6] Oliveira, Regiane. El País. Disponível em: https://brasil.elpais.com/ciencia/2021-01-06/juliano-moreira-o-psiquiatra-negro-que-revolucionou-o-tratamento-das-doencas-mentais-no-brasil.html